Releiam novamente o conto em voz alta (antes de responder), pois ele é muito complexo e culto.
A PORTA ABERTA
SAKI
(Hector Hugh Munro -1870 ✟1918)
— Minha tia já vai descer, sr. Nuttel — disse uma jovem dama de 15 anos, muito segura de si. — Enquanto isso, o senhor terá de me aturar.
Framton Nuttel procurava dizer algo apropriado que lisonjeasse devidamente a sobrinha no momento sem indevidamente menosprezar a tia de logo mais. De si para si duvidava, mais do que nunca, que visitas de cortesia, como essa, a uma série de pessoas estranhas, beneficiassem muito o tratamento de nervos a que pretendiam submetê-lo.
— Já sei como vai ser a coisa — dissera-lhe a irmã quando ele preparava sua retirada para aquele recanto de província. — Você vai-se enterrar ali sem falar a vivalma, e vai-se aborrecer tanto que os seus nervos ficarão piores do que nunca. Pelo sim, pelo não dou-lhe umas cartas de recomendação para todas as pessoas do lugar minhas conhecidas. Algumas delas, ao que me lembro, são bem agradáveis.
Framton perguntava a si mesmo, agora, se a sra. Sappleton, a quem vinha apresentar uma daquelas cartas, pertencia ao grupo agradável.
— O senhor conhece muita gente aqui? — perguntou a sobrinha quando julgou que já tinham tido entre si bastante silêncio.
— Quase ninguém — respondeu Framton. — Minha irmã passou aqui algum tempo na reitoria, há uns quatro anos, e deu-me cartas de apresentação para várias pessoas daqui.
Estas últimas palavras foram pronunciadas em tom de manifesto pesar.
— Então o senhor não sabe praticamente nada a respeito de minha tia? — perguntou a jovem dama, segura de si.
— Nada, a não ser o nome e o endereço — reconheceu o visitante.
Nem sabia se a sra. Sappleton era casada ou viúva. Um não sei quê indeterminável parecia sugerir a existência de homens na casa.
— Pois a grande tragédia dela ocorreu há três anos — declarou a menina —, quer dizer, após a visita da irmã do senhor.
— Tragédia? — perguntou Framton.
Naquele cantinho tranquilo de província parecia não haver lugar para tragédias.
— O senhor poderia perguntar por que deixamos esta porta-janela aberta numa tarde de outubro — disse ela, indicando uma larga porta que dava sobre um relvado.
— Está muito quente para a estação — observou Framton —, mas será que essa porta tem algo que ver com o drama?
— Foi por ela que, há três anos menos um dia, o marido de minha tia e seus dois jovens irmãos saíram para a caça. Nunca voltaram. Ao atravessarem o brejo para chegar ao seu lugar favorito, onde costumavam caçar narcejas, os três foram tragados por um pântano traiçoeiro. Naquele ano o verão tinha sido muito úmido, o senhor sabe, e trechos seguros do caminho em outros anos cediam de repente sem dizer água-vai. E — o que há de mais horrível — os corpos nunca foram encontrados.
Aqui a voz da menina perdeu o tom firme e tornou-se hesitante, humana:
— A pobrezinha da titia sempre pensa que eles um dia voltarão, eles e o pequeno sabujo castanho que com eles se perdeu, e vão entrar pela porta, como habitualmente faziam. É por isso que a deixam aberta todas as tardes, até o cair do crepúsculo. Pobre titia! Mais de uma vez me contou como eles foram embora, seu marido com o impermeável branco sobre o braço, e Ronnie, seu irmão mais moço, cantando “Bertie, por que estás pulando?”, com que habitualmente a agastava, porque ele dizia que aquilo a irritava muito. Sabe? Às vezes, em noites tranquilas, silenciosas como esta, eu tenho uma espécie de calafrio: parece-me que os vejo todos entrar por aquela porta.
Interrompeu-se, com um leve tremor. Foi para Framton verdadeiro alívio quando a tia irrompeu no salão multiplicando desculpas por não haver aparecido antes.
— Espero que Vera o tenha divertido — disse.
— A conversa dela tem sido muito interessante — declarou Framton.
— Espero que a porta aberta não o esteja incomodando — disse a sra. Sappleton com vivacidade. — Meu marido e meus irmãos vão chegar da caçada, e eles sempre entram por aqui. Hoje foram caçar narcejas no paul, e vão sujar completamente os meus pobres tapetes. São coisas de homem, não é?
Continuou a tagarelar sobre a casa e a escassez de aves e as perspectivas de haver patos no inverno. Para Framton tudo aquilo era simplesmente horrível. Fez um esforço desesperado, mas só em parte bem-sucedido, a fim de encaminhar a conversa a outro assunto menos horroroso; sentia que a dona da casa só lhe consagrava parte de sua atenção, pois seus olhares iam, sem parar, em direção à porta aberta e ao relvado. Fora, na verdade, uma coincidência infeliz que o trouxera àquela casa precisamente naquele aniversário trágico.
— Os médicos são unânimes em me aconselhar repouso absoluto, abstenção de qualquer excitação mental e de qualquer exercício físico de certa violência — anunciou Framton, que sofria da ilusão, muito espalhada, de que pessoas de todo estranhas a nós, ou conhecidas por acaso, ficam ávidas de conhecer até os mínimos pormenores de nossas doenças e enfermidades, de sua causa e seu tratamento. — Eles só não estão de acordo quanto ao regime — acrescentou.
— Não? — perguntou a sra. Sappleton num tom que ainda em tempo substituiu um bocejo.
Depois, de repente, seu rosto se aclarou num ar de atenção, mas não àquilo que Framton dizia.
— Afinal chegaram! — exclamou. — Justo à hora do chá. Mas não vê que estão cheios de lama até os olhos?
Framton estremeceu de leve e voltou-se para a sobrinha com um olhar destinado a comunicar-lhe uma compreensiva solidariedade. A mocinha estava com os olhos fixos na porta, cheios de horror e estupefação. Num frio choque de medo inominável, Framton virou-se na sua poltrona e olhou para a mesma direção.
No crepúsculo cada vez mais escuro três vultos atravessavam o relvado em direitura à porta; os três sobraçavam espingardas, e um deles tinha também uma capa branca, pendente de um dos ombros. Um sabujo castanho, cansado, seguia-lhe as pegadas. Sem barulho chegaram à casa, até que uma voz moça e rouca se pôs a cantar no lusco-fusco: — “Bertie, por que estás pulando?”
Framton agarrou compulsivamente a bengala e o chapéu; a porta do vestíbulo, o passeio de cascalho e o portão da frente foram as etapas confusamente notadas de sua precipitada fuga. Um ciclista que vinha pela estrada teve de se encostar à cerca para evitar uma colisão.
— Chegamos, querida — disse o da capa branca entrando pela porta. — Estamos cheios de lama, mas quase toda seca. Mas quem foi que fugiu daqui à nossa chegada?
— Um homem esquisitíssimo, um certo sr. Nuttel — disse a sra. Sappleton. — Só sabia falar das próprias doenças, e sumiu sem uma palavra de adeus ou de desculpa quando vocês entraram. Dir-se-ia que viu um fantasma.
— Parece-me que foi o sabujo — disse calmamente a sobrinha. — Ele me contou que tinha horror a tudo quanto é cachorro. Certa vez foi perseguido, num cemitério lá nas margens do Ganges, por uma matilha de cães párias, e teve de passar a noite numa cova recém-aberta, com os bichos a rosnar, a espumar, a arreganhar os dentes para ele. O bastante para a gente ficar com os nervos abalados.
Ela estava-se especializando em improvisar histórias.
Questões de
interpretação do conto A PORTA ABERTA.
1) O conto A porta aberta pode ser dividido em cinco partes. Copie o início de cada parte.
a)Introdução: a conversa da
garota com o Sr. Nuttel.
b) A garota fala da tragédia que se teria abatido sobre a tia.
c) A tia aparece e começa a conversar normal e distraidamente com o Sr.
Nuttel.
d) A Sra. Sappleton anuncia a chegada do marido e do seu visitante foge
precipitadamente.
e) Desfecho: O marido entra,
pergunta pelo homem que saíra correndo e
ouve a explicação
serena da mulher e da sobrinha.
2- O clímax de
uma narrativa é o ponto alto da história, o momento para o qual toda a história
converge. Qual é o clímax deste conto?
3- Todo conto é construído
em torno da
expectativa do visitante,
que aguarda a
todo momento o acontecimento de algo sobrenatural.
a)Como se criou essa expectativa?
b) Que provocou o clima de expectativa e a reação apavorada do
visitante?
c) Você pode afirmar, com
certeza, que tudo não passara (tinha passado) de uma invenção da sobrinha?
Justifique.
4) O texto apresenta
recursos bastante interessantes
no que se
refere à introdução
e à conclusão
do conto. Observe-os e responda:
a)Como se deu a introdução?
b) Como se deu a conclusão?
- ATENÇÃO ↧
OBS: Desta questão em diante você tem que copiar a pergunta também, pois houve um equívoco e eu esqueci de pôr na folha xerocada.
5) Quais os diferentes significados que a expressão “A porta aberta” têm
para cada personagem.
(1) A porta aberta é o local onde os familiares da sra. Sappleton, já
mortos, podem passar a qualquer momento.
(2) A porta aberta permite avistar va família que volta da caça.
(3) A porta aberta inspira a criação de uma história inusitada
(fantasiosa e não comum).
( ) Vera
( ) Sra. Sappleton
( ) Sr. Nuttel
6) Qual é o foco narrativo deste conto?
O foco narrativo é em terceira pessoa
(3ª). Trechos que justificam a resposta.
7) Como podemos
classificar o NARRADOR desta história: onisciente ou observador? Justifique com
trechos do conto.
8) Comparando o conto
“A porta aberta” com o conto “A orelha de Van Gogh”, qual dos dois teve o
desfecho mais surpreendente? Por quê?
Prof.ª Elisete, 04/05/20, às 11h